Todo mundo leva as coisas muito a sĂ©rio. Se vocĂȘ lĂȘ um livro mais leve ou âboboâ, jĂĄ vem alguĂ©m falar que aquilo nĂŁo vai acrescentar em nada na sua vida; que Ă© algo inĂștil ou que vocĂȘ sĂł estĂĄ perdendo tempo. Mas, no meio disso tudo, ninguĂ©m para e pensa na possibilidade de vocĂȘ estar fazendo aquilo por puro entretenimento; simplesmente porque gosta.
Sempre vem alguĂ©m empurrar um livro cult goela abaixo, uma sĂ©rie reflexiva, um filme com uns mil prĂȘmios; pra, supostamente, nĂłs nĂŁo âgastarmos tempoâ em algo âinĂștilâ. Como se qualquer coisa que nĂŁo exija tanta reflexĂŁo fosse inferior Ă s mĂdias que fazem a gente pensar e pensar e pensarâŠ
Eu tenho a impressĂŁo de que muita gente consome conteĂșdos assim pra sentir que estĂĄ âfazendo algo Ăștilâ; como uma espĂ©cie de compensação do prĂłprio tempo; e nĂŁo necessariamente porque gosta. âah, eu nĂŁo gasto horas do meu dia com coisas que nĂŁo levam a nadaâ e esse tipo de coisa.
Vou admitir que curto filmes e livros nessa pegada; aquelas mĂdias que geram reflexĂŁo e que vocĂȘ tem que prestar atenção em cada detalhe pra entender o todo e a mensagem que aquela obra quer trazer, maaaas, por outro ladoâŠ
Tem dia que eu sĂł quero me afundar no sofĂĄ, ligar a TV em um filme ruim nĂŁo pensar em mais nada. Assistir sem pensar na mensagem da obra, no cenĂĄrio, na reflexĂŁo que aquilo quer passarâŠĂ s vezes, isso nĂŁo importa, e a minha real prioridade naquele momento Ă© ficar tĂŁo imerso no enredo bem mediano a ponto de esquecer da minha prĂłpria existĂȘncia.
As histĂłrias absurdas
Esses dias, vi um vĂdeo de um criador de conteĂșdo literĂĄrio lĂĄ no Instagram. Ele estava falando sobre o fato de, hoje em dia, nĂŁo vermos com tanta frequĂȘncia aquelas histĂłrias meio âsem pĂ© nem cabeçaâ; que sĂŁo meio bobas e que trabalham a ironia e o humor com base no absurdo; no que nĂŁo faz sentido.
Uma coisa bem interessante que ele disse foi que hoje em dia os livros, filmes e qualquer mĂdia de entretenimento estĂŁo âpresasâ; por assim dizer, nessas regras duras e rĂgidas de verossimilhança; como se a arte sempre precisasse ser lĂłgica e fazer sentido.
Acontece que isso acaba limitando a criatividade de todo mundo; a arte passa a ser âengessadaâ e, de certa forma, sem graça, porque tudo Ă© muito real; muito verossĂmil. Mas a arte nĂŁo precisa ser assim; muito pelo contrĂĄrio.
Ă interessante trabalhar nessa coisa meio sem sentido e absurda, cenas que nĂŁo precisam fazer sentido porque essa Ă© a intenção; e nĂŁo um erro ou algo âinĂștilâ. A arte; os livros, filmes, as mĂdias que as pessoas insistem em enfiar regras sem sentido nĂŁo devem ser sĂł uma coisa ou outra; nĂŁo devem ser apenas obras reflexivos e completamente verossĂmeis e realistas. O humor âabsurdoâ e as histĂłrias sem sentido tambĂ©m precisam existir, porque tudo isso se completa
MĂdias cults (sim, elas denovo)
Mas, se as pessoas insistem nesse senso de âsuperioridadeâ por consumirem apenas as mĂdias cults e deixam o resto de ladoâŠnada funciona. Porque, temos que admitir, todo mundo precisa ler ou assistir algo sem sentido nenhum sĂł pra esquecer dos problemas.
Se vocĂȘ me disser que, quando para pra assistir um filme depois de um dia cansativo, a sua primeira opção Ă© uma histĂłria complexa e cheia de crĂticas sociais e mensagens implĂcitasâŠsinto muito, mas vocĂȘ tĂĄ mentindo. Porque, mesmo que exista uma pequena parcela da população que realmente para e pensa em assistir ou ler alguma coisa muito densa e cheia de nuances depois de um dia cansativo pra, talvez, se esquecer dos problemas e focar apenas nas reflexĂ”es que aquela obra traz; Ă© mais difĂcil de acontecer - e vocĂȘ provavelmente vai ficar com dor de cabeça depois, caso o faça.
Ao mesmo tempo em que vocĂȘ nĂŁo vai assistir um filme totalmente absurdo e sem sentido pra debater e refletir sobre cada mĂnimo aspecto dele e fazer uma anĂĄlise crĂtica; isso, sim, Ă© um trabalho das âmĂdias cultsâ. Porque as obras que trabalham esse senso do absurdo nĂŁo foram feitas pra serem minuciosamente analisadas com base em lĂłgica e verossimilhança - pelo simples motivo de que elas nĂŁo tem sentido, e nem devem ter.
Mas aĂ, quando vocĂȘ fala sobre um filme ou um livro bobo - que pode ou nĂŁo ser âabsurdoâ - sai alguĂ©m de um buraco pra falar que âisso Ă© inĂștilâ; que vocĂȘ âsĂł tĂĄ gastando tempoâ; que âdevia ler/assistir uma histĂłria de verdadeâ - e, denovo, nem sempre Ă© o que queremos.
Um mundo sério demais
Todo mundo leva as coisas muito a sério.
O mundo Ă© preenchido por regras. Regras sociais (muitas vezes desnecessĂĄrias), leis, regras no trabalho ou na escola ou faculdade, regras na nossa prĂłpria casa (o que facilita a convivĂȘncia), regras meio implĂcitas atĂ© mesmo nas amizades e outros relacionamentos. E, tudo bem, hĂĄ lugares em que nĂŁo hĂĄ regras ou um manual com o passo a passo do que se deve fazer; mas aĂ, tudo precisa fazer sentido. Mesmo que nada esteja planejado, cada ação precisa fazer sentido; ter uma lĂłgica.
Isso Ă© meio que um senso comum. Nossas açÔes fazem sentido. Dia apĂłs dia, nĂłs nos levantamos da cama, cumprimos as nossas responsabilidades, voltamos pra casa, nos alimentamos ao longo do dia, conversamos com outras pessoas, e mais tarde, nĂłs dormimos e o dia acaba. Mesmo que alguns dias sejam ruins, ou que haja algum imprevisto ou mudança na rotinaâŠsempre faz sentido. AçÔes com começo, meio e fim. Uma ordem clara e concisa.
MasâŠprecisa ser assim nos livros e outras mĂdias? Na ficção?
Sua primeira resposta, muito provavelmente, Ă© sim. Afinal de contas, quem vai querer ler algo que nĂŁo faz sentido? Quem vai querer ler um livro sem lĂłgica nenhuma; onde os fatos nĂŁo estĂŁo em uma ordem clara e verossĂmil? Por que isso seria interessante?
Isso traz um certoâŠequilĂbrio, na minha opiniĂŁo. Porque, sim, os livros e a arte no geral tem um sentido lĂłgico; um enredo, personagens, narrativa, tempo, espaço, tudo muito bem planejado e executado para que nĂŁo hajam furos de enredo ou nenhum erro na verossimilhança da histĂłria. E, em boa parte das histĂłrias (nĂŁo sĂł nos livros), essa verossimilhança Ă© necessĂĄria, masâŠnĂŁo deve ser sĂł isso.
Nem tudo precisa ser cult. Nem tudo precisa trazer uma reflexĂŁo que vocĂȘ vai levar pra vida. Nem tudo precisa ser tĂŁoâŠverossĂmil e cheio de regras.
A nossa prĂłpria vida nĂŁo Ă© tĂŁo verossĂmil assim. Tem muita coisa que acontece que simplesmente nĂŁo tem lĂłgica nenhuma; entĂŁo, se formos pensar por esse ladoâŠporque a arte tambĂ©m nĂŁo pode ser desse jeito? Criar algo absurdo, que fuja das regras e normas implĂcitas e explĂcitas em cada aspecto do mundo, que nĂŁo faça sentido, que seja bobo.
Porque nĂŁo fazer isso?